Em celebração ao Dia do Filósofo, uma entrevista com Thais Publio sobre a mulher na filosofia, sob a perspectiva histórica e no mundo contemporâneo.
No último domingo, 16 de agosto, comemoramos o Dia do Filósofo. E eu tenho aproveitado essas datas comemorativas para tentar imprimir um olhar diferente (e feminino) sobre diversos temas.
Já fiz isso com relação à Revolução de 32, trazendo o papel da mulher na luta constitucionalista, retornei a esse enfoque no Dia dos Avós, mostrando as “avós”das nossas conquistas femininas. Agora, quero aproveitar o Dia do Filósofo para também discutir um pouco o papel da mulher na filosofia.
Para isso, conversei com Thais Publio, formada em Artes Cênicas e professora de Filosofia, que há 20 anos desenvolveu uma linguagem e um despertar para a reflexão que tornou a Filosofia instigante e desafiadora para vários tipos de público, principalmente para adolescentes, trazendo a Filosofia como uma necessidade humana em busca do Bem Viver. Atualmente, além de trabalhar com adolescentes, dá palestras e dirige um grupo de estudo de “Filosofia para quem gosta de pensar a vida”, e também é professora de Ética na Universidade Internacional da Paz (UNIPAZ-RJ), onde é facilitadora da Arte de Viver em Paz (chancelada pela UNESCO como a melhor metodologia em Educação para a Paz).
Um papo altamente informativo e cheio de ensinamentos. Acompanhe:
Renata Spallicci – Estudos mostram que sempre houve mulheres na Filosofia, desde a Antiguidade. Isto é: as filósofas sempre existiram, mas há quase um apagamento histórico dessas mulheres. Fale-nos um pouco sobre a importância das mulheres na construção do pensamento filosófico e o porquê deste subreconhecimento?
Thais Publio – É preciso olhar para isso com uma compreensão histórica. A filosofia surge, como saber puramente humano, desvinculando-se da religião, na Grécia por volta do séc. V a.C.. Nesse período, qual era o papel da mulher? Apenas como reprodutora e cuidadora, seus afazeres eram ligados ao cotidiano, sem amplitudes de horizontes ou relações. Mesmo na religião a maior participação era como pitonisa, a qual, em estado de torpor, recebia a mensagem dos deuses.
A democracia grega não incluía as mulheres, pois não acreditavam que elas tivessem capacidade para julgar assuntos complexos. E, para fortalecer essa postura, os primeiros pensadores desvalorizavam as emoções e sensações, campos conhecidamente femininos.
Ao feminino era associado o ilógico, logo não seria o campo da filosofia. Diotima de Mantinéia aparece nos diálogos de Platão, mas como Sacerdotisa que ensinou a Sócrates o que era o Amor. A função sagrada a autoriza, e o assunto discutido tem algo ligado ao campo das emoções. Temos algumas mulheres fortes que não aceitaram essa condição e fizeram sua voz ser ouvida. Porém, sempre com certa desconfiança, pois a figura da mulher oscilava entre a Sagrada (que traz à vida ou que acessa os deuses, e isso foge à lógica) e a profana (apenas uma figura com utilidade para a evolução dos homens).
Essas mulheres que conseguiram ser ouvidas, são geralmente filhas de homens estudiosos que foram autorizadas a estudar pelo pai, e, em sua maioria, abdicam da construção de família para dedicar-se aos estudos e não se perder nas tarefas domésticas. A chancela de um homem era fundamental para essa inclusão no mundo do saber. Hipátia de Alexandria é a 1ª filósofa grega documentada, já no século IV, veja bem,nove séculos depois dos primeiros filósofos! Sua história foi difícil, e sua conquista e quebra de padrão provocaram tantos inimigos que findou assassinada.
Na idade Média, onde o corpo e o desejo foram demonizados, a figura da mulher quando tenta ter voz e trademonstrar seu conhecimento, é vista como bruxa ou representante do pecado. Mesmo assim, algumas mulheres se colocaram na história do pensamento medieval: temos nomes de peso como Christine de Pizan que, além de filósofa, era escritora, poetisa, intelectual, e Hildegarda de Bingen, filósofa, naturalista, teóloga, compositora, mística, escritora e pintora. Note como a mulher precisa ser um fenômeno para alcançar o respeito e ser aceita.
Seguindo a história, encontramos o pensamento cartesiano, o que também não foi favorável à figura feminina, pois, ao partir o ser humano em coisa que pensa (razão) e coisa que sente (emoção), e localizar a inteligência na coisa que pensa (algo parecido com Platão), vê a mulher muito mais como um ser que sente/emoção do que um ser que pensa/razão, por isso, será dotada de menos capacidade de inteligência que o homem, naturalmente. Tal concepção fez o caminho na construção do pensamento moderno não ser um campo aberto para mulheres.
Mesmo assim, mulheres marcaram seu pensamento e suas reflexões, seja com codinomes ou como autor anônimo, e assim, temos várias filósofas trazendo suas reflexões. Aos poucos a universidade, não sem resistência e preconceito, foi recebendo algumas mulheres como estudantes.
Mary Wollstonecraft (1759-1797), filósofa inglesa, foi um marco no pensamento feminino. Ela escreveu um livro chamado “Reivindicação dos Direitos das Mulheres”, que é o início da reflexão feminista e o marco de uma revolução que se estende até hoje.
Daí surgiram as sufragistas, e a transformação na sociedade se acelerou, a voz feminina ganhou números, rostos e vozes. Mas temos de entender que 25 séculos de preconceito e de uma visão da mulher como pouco capacitada intelectualmente não se vence rapidamente. Por isso, sempre falo que precisamos ter uma visão histórica e uma paciência histórica, sem sermos passivas ou conformistas.
Para entendermos esse desenrolar, podemos ver que só no ano de 2000 foi lançado um estudo que fala da inteligência emocional, quebrando de vez a separatividade imposta pelo pensamento cartesiano.
Renata Spallicci – Como enfrentar, no ensino de hoje, o fato de que muitas mulheres filósofas, com trabalhos relevantes, ainda sejam ausentes das bibliografias e desconhecidas por grande parte dos estudantes de Filosofia?
Thais Publio – Infelizmente não se estudam filósofas mulheres no “Dream Team” da filosofia… Só a partir do pensamento contemporâneo, depois de 1960, vemos Simone de Beauvoir e Hanna Arendt como nomes mencionados obrigatoriamente. Apresentar as filósofas ainda é uma opção ou consciência dos professores. Temos de estudar não somente as filósofas como um tema à parte, mas como integrantes e colaboradoras da construção do pensamento de uma época.
Então, o ideal seria que, quando abordarmos Kant, que é de 1724 a 1804, estudarmos também Mary Wollstonecraft e Harriet Taylor Mill, filósofas britânicas. Quando estudarmos Henri Bergson (1859 – 1941), incluirmos também Alexandra Kollontai (1872 – 1952), filósofa russa que defendia o comunismo e o amor livre. Quando estudarmos Comte (1758 – 1957), versarmos também sobre Nise Floresta (1810 – 1875) que fundou uma escola para meninas no Rio de Janeiro e defendeu o direito dos negros e índios. E tantas outras que, se formos pesquisar, iremos encontrar e nos encantar com a qualidade e frescor do pensamento. Essa hegemonia dos “grandes filósofos” não atinge somente as filósofas, provocando o silenciamento e não divulgação do pensamento feminino, porém vale para todo o pensamento que não é europeu, masculino e branco.
Renata Spallicci – Você acredita que, a exemplo do que observamos na matemática, na física e outros segmentos, há um preconceito acadêmico com relação às mulheres na filosofia?
Thais Publio – Como explicado anteriormente, a mulher era vista como incapaz de separar emoção da razão, o que “atrapalhava” toda a visão e construção de conhecimento. O Racionalismo e o cientificismo trazem a ideia da impessoalidade e objetividade na produção acadêmica, e toda mulher era vista com desconfiança. Mas eu lhe pergunto: é possível um cientista descobrir a cura da AIDS, se não for apaixonado pelo seu trabalho?
Renata Spallicci – Como vê a posição da mulher hoje na filosofia e na criação de conhecimento e saber filosóficos?
Thais Publio – Tenho como referência expressiva, aqui no Brasil, Marilena Chauí, e isso não é um privilégio meu, mulher. Todo estudante de filosofia deve ter na estante o “Convite à filosofia”! Temos renomados pensadoras que estão conquistando seu espaço no pensamento acadêmico brasileiro como: Scarlet Marton, Dijamila Ribeiro, Viviane Mosé, Neusa Vaz e Silva, Marcia Tiburi, entre outras. Ainda temos uma dificuldade de reconhecimento no mundo acadêmico. Ouço relatos de pessoas que, durante a própria formação, sofreram preconceitos ou desvalorização. Eu sou de uma família de matriarcas nordestinas, portanto, as mulheres sempre foram minhas referências. Cursei Filosofia como minha 2ª formação na UERJ, já entrando um pouco mais velha, o que me fazia ter uma postura diferente. Em minha turma, havia juiz, pastor e advogados, e claro, só 20% de mulheres, mas, pessoalmente, nunca senti uma exclusão ou preconceito. Sei que isso existe, e o pequeno número de mulheres firmando-se na área traduz essa realidade. O pensar feminino ainda está se afirmando. A história é lenta. O bom é que cada vez temos mais vozes, de múltiplas origens, o que só tem enriquecido o cenário da filosofia.
Renata – Spallicci – A filosofia vem ganhando um papel “mais popular” com personalidades como Cortella e Márcia Tiburi, que são destaque na mídia e chamados para discutir a sociedade em veículos de imprensa. Por outro lado, temos um ataque ao estudo das humanidades por um setor da política. Como analisa este paradoxo e o papel do filósofo na atualidade?
Thais Publio – Vivemos um momento de crise onde tudo está perdendo o sentido e o valor. Nesses momentos, a filosofia é buscada como uma lanterna à procura de algum sentido ou explicação para o que está acontecendo, iluminando outras possibilidades e formas de ser. Este movimento foi de grande valia também para a filosofia, pois ela mesma estava restrita aos campos acadêmicos, e uma filosofia que não fala e não se traduz em vida, acaba por perder seu sentido e sua raiz. A filosofia nasceu em praças, e este será sempre seu lugar de origem, embora a mídia hoje represente este ambiente das diferentes ideias. Eu entendo que estamos no fim de uma era, e isso não acontece de um dia para o outro como uma virada de página de um livro. Há uma sociedade ainda viva, porém, em decadência, e outra, que era mais anônima, e vem se tornando cada vez mais aparente. A Grécia não decaiu em um dia, e Roma não se tornou um império no dia seguinte, mas houve o tempo de convivência e intersecção dessas duas culturas. É assim que vejo o nosso momento. Os que estão ainda arraigados aos valores que estão decaindo, tentam de toda forma impor e se perpetuar, contudo, seus alicerces estão desmoronando inevitavelmente e entram num processo de autofagia, em que a violência e a radicalidade são os gritos do desespero. Hoje a crise não é só pessoal ou social, é humana. É o sentido da vida e a possibilidade da viabilidade ou não da nossa permanência como habitantes deste planeta que ocupam nossas reflexões mais profundas. Essa é a área da filosofia.
Renata Spallicci – Em um momento como o atual, qual pode ser a contribuição da mulher no pensar o futuro da sociedade?
Thais Publio – Estamos virando a página da separatividade, do entendimento em partes e, cada vez mais, compreendemos tudo a partir do Todo. Somos seres de relação, interligados, interdependentes. Se formos para a biologia e o desenvolvimento dos cérebros feminino e masculino, poderemos perceber que, desde a pré-história, o cérebro feminino se desenvolveu para as múltiplas possibilidades de compreensão da relação. Esse pensamento mais complexo e integrativo é algo que sempre foi praticado pelo feminino, em sua história, e a cooperação, a solidariedade, a preservação da vida, são valores recorrentes na vida da mulher. Acredito que, atualmente, não precisamos mais nos comportarmos como homens ou provarmos que damos conta, para merecermos ser ouvidas. Somos parte integrante e necessária nessa construção de conhecimento. A nova onda do feminismo não defende mais que somos iguais, e sim, que somos diferentes, mas temos direitos iguais de sermos respeitadas. Quando damos voz às mulheres na filosofia, trazemos o pensamento mais contemporâneo que todas as ciências estão alcançando.
Minha gratidão à Thais pela excelente entrevista, e espero que tenham gostado tanto quanto eu das afirmações e reflexões que tivemos aqui! Como sempre digo, valorizar a mulher como produtora do saber e do conhecimento é também uma forma de empoderamento. É o que tento fazer sempre aqui no meu blog!
Ah! Seguem abaixo as matérias que citei lá no comecinho do texto! Vale a pena conferir!
Leia também:
50 anos unidos pelo mesmo legado: cuidar de gente
Revolução de 1932: participação das mulheres abriu frente para novas conquistas
A história das lutas femininas
Busque seu propósito. Deixe o seu legado.
Rê Spallicci