André Antunes Soares de Camargo analisa a importância de práticas reais de ESG em contrapartida à ações oportunistas
Por: André Antunes Soares de Camargo
O termo “ESG” (environmental, social, and governance) entrou de vez no vocabulário do mundo empresarial. A expressão é utilizada corriqueiramente em diversos foros profissionais, discussões e produções acadêmicas e conversas informais entre colegas e amigos. Todos se orgulham em dizer que suas decisões são pautadas nos princípios direcionadores de tal sigla. Parece que achamos a “fórmula mágica” para transitarmos do malfadado “capitalismo de shareholders” para o moderno e tão aclamado de “capitalismo de stakeholders”, este pressupondo a consideração dos interesses, necessidades e até opiniões dos públicos de interesse, estratégicos e influenciados (e influenciadores) das organizações. Mas será que podemos falar em “ESG” em qualquer situação?
Não se trata de um tema unicamente brasileiro, pelo contrário. Como distinguir quem, de fato, está com tal preocupação de forma real e consistente e não só agindo oportunisticamente em uma narrativa publicitária sem essência? O que é “washing” e o que não é? Quem sequer compreende ou aplica as chamadas boas práticas de governança corporativa tem o direito de propagar que possui práticas “ESG”? Será que essa averiguação não deveria ser mais profunda e atenta? Parece que temos uma questão de ordem antes dessa análise, senão vejamos.
Antes de mais nada, quando se fala de governança corporativa devemos entendê-la como um sistema de relacionamentos de longo prazo, repleto de situações de conflitos de interesse, vieses e limitações decisórias. Ou seja, não podemos tratá-la pontual e cosmeticamente, sem uma visão holística. Por relacionamentos, precisamos compreender que toda e qualquer organização, ainda mais na atualidade, independentemente se seu porte, estrutura de capital, tipo societário e ramo de atuação, só existe (e sobrevive) por conta dos seus stakeholders. Sua influência e impactos são normalmente de longo prazo, inspirando confiança de parte a parte. Como cuidamos desse público, em especial em situações de crise e momentos desafiadores, por exemplo? Como vejo (e pratico) temas como inclusão, diversidade e demais temas relacionados a direitos humanos? Como é o meu relacionamento com o meio ambiente, considerando a minha atividade? Em que patamar (e qual o meu “apetite real”) está a minha governança? E, por fim, como amarro todos esses temas de fato?
A confiança e legitimação acima descritas só podem ser alcançadas por meio de mecanismos e processos decisórios orquestrados de forma a tangibilizar cumulativamente os princípios da transparência, prestação de contas, equidade e responsabilidade corporativa. Estruturas, processos, pessoas e cultura empresarial precisam construídas e fomentadas continuamente pelas lideranças, de forma a compor tal sistema de regras e mecanismos formais e informais, dando uma coesão e um direcionamento estratégico para que tal sensação de confiança seja criada, mantida e aprimorada interna e externamente.
Logo, quando se fala em “ESG”, o percurso lógico descrito acima precisa ser previamente realizado e averiguado, em especial por terceiros independentes. É impossível afirmar (muito menos sem métricas empresariais fidedignas) que uma organização tem práticas e produtos com tais características, se seu sistema de governança sequer existe ou possui relevantes falhas a serem corrigidas. Do contrário, estaríamos subvertendo a ordem normal das coisas, trazendo à tona algo que o mundo (talvez só as lideranças empresariais…) quer ver, ter e aplaudir, sem antes a organização, de coração e alma, ter institucionalizado tal visão.
Quem está transformando suas organizações para esse novo olhar, já percebeu que não se trata somente de um belo projeto, bem orçado e calendarizado, mas sim de uma jornada de longo prazo e que perpasse por todas as dimensões e etapas acima descritas, nem precisando carimbar-se de “ESG” para chamar a atenção de quem quer que seja. Como direcionar uma organização para esse novo caminho sem antes “arrumar a casa”? Como posso falar em “ESG, se sequer fiz um assessment ou um gap analysis antes? Como se preparar para essa nova fase?
Temos assistido e nos surpreendido negativamente com discursos bastante vazios tecnicamente sobre o tema. Não se questiona o poder influenciador dessa narrativa, até porque ele é extremamente necessário, positivo e poderoso para que tenhamos melhores produtos e serviços no mercado consumidor. Quem não aprecia a chamada “cidadania corporativa”, fundamental em tempos de questionamento do próprio papel do Estado. Não há desenvolvimento geral de um país ou de um setor sem agentes econômicos dotados de boas práticas de governança, conscientes de seus impactos positivos e negativos. O que devemos sempre nos questionar é podemos falar tão natural e entusiasticamente em “ESG” em nosso atual estágio de governança corporativa. Sem essa reflexão técnica e quase “terapêutica”, podemos frustrar nossos tão queridos e necessários stakeholders e, principalmente, a nós mesmos.
Leia também:
10 dicas para se proteger e não compartilhar fake news
Porque diversidade e inclusão são essenciais nas organizações
Diversidade e inclusão no mundo corporativo
Busque seu propósito. Deixe o seu legado.
Rê Spallicci
Sócio de TozziniFreire Advogados na área Corporate, com foco em M&A e governança corporativa. Pós-doutorado (professor visitante) na Universidade de St. Gallen, Suíça. Doutor em Direito Comercial pela USP. Professor universitário há 20 anos nos temas de direito empresarial, governança corporativa e ética empresarial. Vice-Presidente e cocoordenador da Comissão ESG desde 2019. Autor de artigos, capítulos de livros e de três livros, dentre os quais “Regulação Internacional da Governança Corporativa e do Compliance” (2021), da Ed. Thomson Reuters.